Algumas nuvens encobriam o céu e eu escalava o Paredão Itacoatiara, no Morro do Tucum (Niterói, RJ), no Parque Estadual da Serra da Tiririca (Peset). Olhei para baixo e vi minha parceira escalando pelas agarrências tradicionais do Rio de Janeiro. Para além dela, meus olhos foram atraídos pelo mar de ressaca, que deixava as ondas mais ameaçadoras do que o normal na Praia de Itacoatiara. O mar não estava para peixe e parecia que os poucos surfistas na areia achavam que também não estava para o surfe. O grupo estava parado com os braços cruzados olhando para o mar, provavelmente debatendo se valia a pena arriscar a entrada.
Itacoatiara é um point tradicional de surfe. Suas ondas são geralmente ameaçadoras para o meu gosto, mesmo para um rápido mergulho. Vejam bem, não “sou” de praia, “sou” das montanhas, então só de olhar aquele mar revolto, me arrepiei de medo. Então, quando pelo canto do olho notei o vulto de um audacioso (falo isso com admiração) surfista remando para passar da arrebentação, pensei: “que doido”. Ao mesmo tempo, comecei a ponderar sobre a percepção do risco em relação à escalada e ao surfe no Rio de Janeiro e nas consequências para a sua prática e manejo.
Sem me estender muito, o surfista passou da arrebentação, minha parceira chegou e prossegui escalando. Chegando à outra parada, levei um tempo para encontrar o surfista naquele mar mexido, até que consegui distingui-lo no mesmo lugar. Talvez estivesse esperando a onda certa ou talvez estivesse acumulando a coragem necessária pra sair da roubada em que se encontrava. Seja lá o seu motivo, minha mente se inundou com reflexões e comparações sobre o risco enfrentado por nós e por ele. O bravo surfista encarava solitariamente aquele mar revolto que apresentava um risco tal que nenhum outro colega se aventurava. De onde estávamos, não era possível perceber nenhuma “autoridade” (bombeiros, gestores, policiais etc.) estabelecendo um limite para esse surfista. Também não havia placas ou instrumentos legais que estipulassem algum tipo de proibição, nem mesmo restrições ou regulamentos formais, ao surfe em dias de mar de ressaca ou outro dia qualquer.
Já no nosso caso, e há aí certo grau de ironia, escalávamos uma via de 3o IVsup, com boa aderência, o que nos oferecia poucos desafios, considerando nossa experiência. Para esclarecer para quem não escala, esses números indicam que era uma via fácil com um trecho pontual moderado. Só que para se aventurar por essa via, de pouca dificuldade e risco, foi necessário um trabalho de longo prazo da Federação de Esportes de Montanha do Estado do Rio de Janeiro (Femerj) para garantir o acesso, a prática do esporte e a possibilidade de assumirmos o risco inerente à atividade. Deixe-me explicar.
Atualmente, para escalar essa e as várias outras vias no Peset, há uma série de regulamentos, como restrições de horário e limite de pessoas, e naquela área do parque é necessário assinar um termo de conhecimento de risco, assim como em outras unidades de conservação (UCs). O meu objetivo não é questionar a necessidade ou a adequação desses regulamentos mas, sim, comparar a percepção do risco sobre o surfe e a escalada. E mesmo o fato da Praia de Itacoatiara não fazer parte do Peset não invalida uma reflexão mais abrangente com base nessa dicotomia que ficou tão clara naquele momento.
Em Itacoatiara o mar é reconhecidamente revolto; já as escaladas de parede, na sua grande maioria, se mantém em nível fácil a moderado de dificuldade. Enquanto para enfrentar os desafios daquele marzão só é preciso uma prancha, habilidade e coragem, para se aventurar pelas rochas há um série de regulamentos e imposições que, se não fosse o árduo trabalho “invisível”, mas constante, da Femerj, possivelmente seriam tão restritivos que invalidariam a prática da escalada de acordo com as nossas tradições e éticas.
Se extrapolarmos a comparação, podemos ir para outra praia em outra UC, o Parque Natural Municipal da Prainha, no Rio de Janeiro, cujas ondas são também bastante procuradas pelos surfistas e o mar não é dos mais calmos. O surfe é uma atividade celebrada e valorizada na unidade, como deve ser. Já a escalada e o montanhismo são entendidos como muito arriscados e até mesmo uma trilha leve, de exposição pequena ao risco e dificuldade de orientação moderada[1], que existe há décadas na Pedra dos Cabritos, foi proibida com o argumento de que era muito perigosa, além de impactante ao meio ambiente – outro ponto questionável.
Ampliando o foco, consideremos alguns dados dos anuários do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro. Em 2018, houve 25.513 atendimentos marítimos e não há dados para salvamentos em montanha. O anuário indica que 111 operações de busca e salvamento no mar utilizaram aeronaves do GOA, enquanto na montanha foram 53. Já em 2017, houve 41.555 atendimentos marítimos e 7.180 de busca e salvamento de pessoas fora do mar (sem especificar onde). As aeronaves do GOA atuaram em 72 salvamentos no mar e 57 na montanha.
Os dados são gerais e não distinguem as situações nem as atividades, portanto não há como falar especificamente de surfe ou escalada, e há poucos dados para montanha. No entanto, podemos perceber que em 2017 houve um número consideravelmente superior de atendimentos no mar do que outras áreas (mais de 578%), enquanto que em 2018 mais de 50% das operações com as aeronaves do GOA foram dedicadas ao mar.
Com tantos acidentes e atendimentos (e diversas mortes), desconheço qualquer movimentação para proibir a entrada no mar do Rio de Janeiro simplesmente porque é perigoso, dentro ou fora de UCs. No entanto, vira e mexe fala-se em proibição de acesso e da prática da escalada e do montanhismo apenas porque são muito arriscados, ainda mais dentro de UCs.
Portanto, a ironia está na forma como a escalada e o surfe são tratados no Rio de Janeiro em relação ao risco. Enquanto os surfistas têm o direito de praticar a sua atividade em qualquer tipo de ambiente, até mesmo se arriscar em mares de ressaca, como presenciei em Itacoatiara, nós, escaladores, vemos nossa atividade sob constante ameaça pelo simples fato de ser arriscada, uma característica intrínseca da escalada.
Admito: tenho uma certa inveja dos surfistas, que praticam o seu esporte e vivem o seu estilo de vida sem ameaças constantes pairando sobre eles, como, por exemplo, deputados tentando aprovar projetos de lei que comprometam o acesso ou a prática de caminhadas e escaladas com dispositivos estapafúrdios e, na maior parte dos casos, inviáveis. Espero ver o dia que a escalada seja considerada tão essencial à nossa cultura como o surfe, baseado no entendimento de que todos temos direito ao risco.
OBS 1 – Para saber mais sobre direito ao risco, leia o artigo do André Ilha.
OBS 2 – Nem tudo tem um caráter tão díspar quanto essa questão do direto do risco entre o surf e a escalada. Não perca o debate HOJE com organizações de surfistas sobre a atuação deles em prol do estilo de vida do surfista e da conciliação entre a prática do surf e a conservação do meio ambiente, além da proposta do Programa Brasileiro de Reservas de Surf.